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18 de Abril de 2024

Congresso e Justiça articulam 'neogolpismo' no Brasil, diz especialista em impeachment de Lugo

Especialista em transição democrática no Paraguai, Magdalena López reconhece semelhanças entre impeachment de Fernando Lugo e procedimento contra Dilma

Publicado por Carla
há 8 anos

Aline Gatto Boueri | Buenos Aires

Há cerca de quatro anos, um impeachment relâmpago retirou Fernando Lugo do governo do Paraguai depois de uma chacina na que morreram 17 pessoas - 11 camponeses e seis policiais. O país foi suspenso do Mercosul por dois anos, mas manteve os intercâmbios econômicos dentro do bloco.

A cientista política argentina Magdalena López acredita que as direitas do Cone Sul observaram a frágil resposta regional à destituição de Lugo e, atentas às leves consequências, aprenderam a usar a legalidade - ”interpretada de forma maleável” - para articular novas formas de golpe de Estado.

Doutora em Ciências Sociais pela UBA (Universidade de Buenos Aires), integrantedo Instituto de Estudos Sobre América Latina e Caribe (IEALC-UBA) e membro do Grupo de Estudos Sociais sobre Paraguai, López conversou com Opera Mundi sobre as semelhanças entre o processo contra Lugo em 2012 e a articulação para o impeachment de Dilma Rousseff no Brasil hoje.

Opera Mundi: Em 2012, quando Fernando Lugo sofreu impeachment, houve uma disputa entre os que defendiam a constitucionalidade do processo e os que o definiam como golpe. Isso se repete hoje com o processo brasileiro. Como a senhora analisa esses procedimentos? Magdalena López: O discurso da legalidade no Cone Sul está muito associado a como se realizou a transição à democracia. A legalidade ficou associada à democracia, enquanto a ilegalidade ou inconstitucionalidade ficou relacionada à ditadura. Há uma transferência de sentido: monta-se uma fachada de legalidade, diz-se que está na Constituição e, por isso, é democrático.

O giro democrático veio acompanhado de um giro legalista e, de repente, partidos de extrema direita que convocam a desestabilizar governos - com outras palavras, claro - estão inseridos no que é a legalidade democrática, enquanto movimentos camponeses que ocupam terras, para reivindicá-las para quem nelas produz, ficam fora desse marco.

Hoje existe uma disputa política e também sociológica sobre o que é tecnicamente um golpe. Setores conservadores da academia consideram que esses procedimentos não são golpes porque 'os golpes de Estado, por definição tradicional, são feitos com intervenção militar', que foi o caso de Honduras, mas não do Paraguai. No Paraguai não houve intervenção militar de nenhum tipo.

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OM: Quais são as diferenças e as semelhanças entre os casos de destituição de presidentes em Honduras e Paraguai e a tentativa de fazer o mesmo com Dilma Rousseff no Brasil? ML: Há paralelos importantes entre dinâmica política do impeachment no Paraguai e o que acontece no Brasil hoje. Já no caso de Honduras, [o ex-presidente destituído] Manuel Zelaya foi retirado de casa de pijama e, a seguir, montaram um processo político, que foi posterior à destituição real. Por isso, considero que o caso do Paraguai é muito mais parecido com o do Brasil, onde Parlamento e Judiciário articulam estratégias neogolpistas.

Como é possível eleger um presidente e, ao mesmo tempo, eleger um conjunto de parlamentares dos quais não temos nenhuma garantia de que vão responder a esse presidente, ainda que tenham sido eleitos como aliados e façam parte do governo? Como explicar que as mesmas pessoas que disputaram eleições ao lado de Lugo tenham se aliado à oposição para votar de maneira favorável a seu impeachment? Ou, da mesma forma, como explicar o abandono do PMDB ao governo de Dilma há algumas semanas?

Isso evidencia outro problema das instituições de Estado, que é o tipo de republicanismo que temos. Há uma falha nas teorias da representação, um hiato enorme entre os que votam e os que os representam, além de um hiato quase irremediável entre as três corporações do Estado - Judiciário, Executivo e Legislativo.

OM: O que a senhora define como estratégias neogolpistas? ML: As novas estratégias de golpe, utilizadas pelas direitas em aliança com grandes meios de comunicação, corroem a legitimidade a partir do discurso. Arrebenta-se a governabilidade - que é a palavra que explode nesses casos - e instala-se um discurso que corrói a capacidade de governo. Depois disso, instaura-se um julgamento político que, no caso de Lugo, era por 'má gestão pública'.

Mas esse discurso de deslegitimação não vem do nada. As pessoas não são estúpidas. Elas não chegam a fim de mês com seu salário. Então as direitas se apoiam sobre um problema estrutural e sobre o desgaste de um modelo que nunca se desprendeu por completo do neoliberalismo, que nunca abandonou por completo o capitalismo ou começou definitivamente a ser socialista, apesar de dizer que ia nesse sentido.

OM: É esse desgaste que favorece o surgimento de novas direitas na região? ML: O esgotamento dos projetos pós-neoliberais - ou populistas, que cada um chame como quiser - favorece uma reorganização das direitas. Mas não são novas, são as mesmas de sempre na América Latina, que detêm os meios de produção na região.

As direitas entram nas brechas. Porque são poderosas, têm dinheiro, têm estruturas - maiores até que as dos partidos - e têm capacidade de compra e venda. Mas se os governos fossem incrivelmente justos com as classes populares, se tivessem feito aquilo que disseram que estavam fazendo, elas não teriam espaço. A estratégia de deslegitimação de um governo popular - ou mais popular que outros - teve tanto eco porque havia contradições intrínsecas anteriores, provavelmente mais relacionadas com aspectos econômicos, que é o que mais peso tem para as classes populares. E que tinham sido desatendidas pelos governos que diziam que as atendiam.

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OM: Esse foi o caso do Paraguai? ML: No Paraguai houve 23 tentativas de processo político contra Lugo antes de que a 24ª funcionasse, quando montaram uma chacina e mataram 17 pessoas. O país é um caso excepcional no Cone Sul, porque é o único país que tem crescimento ininterrupto desde 2007, é quase um milagre latino-americano nesse sentido. Mas somente nesse sentido, porque não há distribuição dessa riqueza. Ou seja, a situação econômica durante o governo de Lugo não foi incrivelmente melhor para as classes populares, ainda que tenha havido medidas que tornaram a pobreza mais digna.

Um dos maiores problemas do país é a distribuição da terra, a necessidade de reforma agrária, que Lugo incluiu entre suas propostas de campanha e não cumpriu. Isso roeu sua legitimidade. E não foi casual que tenham montado uma chacina justamente em uma ocupação e os mortos tenham sido 11 camponeses e seis policiais. É uma estratégia tão perfeita e horrorosa, que mataram também esses seis policiais para interpelar os desejos da direita, para quem a vida dos camponeses não vale nada. Utilizaram a morte dos policiais para gerar comoção.

OM: O impeachment no Paraguai pode ter servido de laboratório para outras experiências na região? ML: Efetivamente, o que aconteceu no Paraguai foi um ensaio. No entanto, não creio que tenha sido pensado como um ensaio. Internamente, os países têm dinâmicas domésticas que nem sempre estão relacionadas com o exterior. E as formas autoritárias de exercer a política no Paraguai, além de estar relacionadas com as formas autoritárias de outras direitas do mundo, também têm a ver com o que acontece no próprio Paraguai. É preciso não perder isso de vista.

Porém, podemos dizer que as direitas da região observaram o que aconteceu lá e como o uso da legalidade - uma legalidade interpretada de forma maleável - é muito mais efetivo que o uso das armas. Para o capitalismo é mais efetivo, porque não há ruptura da ordem, logo, os negócios continuam funcionando. E é social e politicamente mais efetivo também.

OM: No Brasil, alguns setores defendem que a queda de Dilma poderia trazer uma recuperação econômica e mais estabilidade ao devolver governabilidade ao país. É real que esse tipo de processo de destituição mantém o clima de normalidade e não traz impactos negativos para a economia? ML: No caso paraguaio, lamentavelmente, é verdade. Praticamente não houve ruptura de ordem social ou grandes massas ocupando as ruas ou as estradas. Isso tem a ver com a dinâmica do protesto social no país, que é muito diferente da do Brasil, onde milhares de pessoas saíram às ruas contra o impeachment. No Paraguai, era possível contar com os dedos das mãos as pessoas que protestavam em frente ao Parlamento, à espera dos camponeses, que nunca chegaram.

Depois do impeachment, o Mercosul tomou a decisão de não romper os acordos sociais com o Paraguai - o que é positivo, porque afetar o direito à migração dentro do bloco para os paraguaios seria atacar a população e não o governo. Também decidiu não interromper as atividades econômicas com o Paraguai e é preciso avaliar como as elites econômicas brasileiras observaram isso. A única punição foi a suspensão política momentânea, que serviu como estratégia para incluir a Venezuela no bloco, já que o voto negativo do Paraguai impedia isso sistematicamente, mas não teve grandes impactos na política local. Aliás, a suspensão política foi tão leve, que com a eleição seguinte, sem sequer controlar se houve fraude, o Paraguai já foi novamente incorporado ao bloco.

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OM: Depois do golpe de 1954 no Paraguai, que colocou Alfredo Stroessner no poder, houve uma sequência de golpes de Estado em vários países da América do Sul. É possível estabelecer um paralelo entre essa onda de ditaduras e o momento atual? ML: Por sua constituição política, o Paraguai é um bom lugar para ser um primeiro lugar. Há pouca atividade social - protestos, mobilizações, passeatas, sindicalização. É um bom lugar para se jogar a primeira bomba, porque sabe-se que o contra-ataque popular - que é a única resposta que se pode dar a esse tipo de coisa - vai ser pequeno.

Por outro lado, o começo da ditadura no Paraguai em 1954 está absolutamente desalinhado com o que aconteceu nos anos 1970 nos outros países da região. Ainda assim, sabemos que a experiência do Paraguai ensinou muitas coisas. Não podemos perder de vista que a Operação Condor foi assinada em Assunção e isso é um símbolo muito importante da impunidade que havia.

OM: O Paraguai é um bom lugar para testar experiências golpistas por conta da pequena resposta popular ou pesa também a institucionalidade frágil? ML: O Paraguai tem uma institucionalidade frágil, mas não acho que tenham observado esse aspecto no Brasil. Acho que observaram as possibilidades de resposta e as consequências regionais. Se um congressista conservador avaliar que [após a destituição de Lugo] o Paraguai foi suspenso do Mercosul por dois anos e depois as negociações dentro do bloco se mantiveram, então ele pode concluir que o impeachment não é tão grave.

Não quero dizer que, se aconteceu no Paraguai, pode acontecer em outros lugares. Mas é necessário olhar para o caso paraguaio com mais respeito analítico; ver como os partidos de associaram ou como se desassociaram, como se distanciaram dessa figura que queriam eliminar, a de Lugo no caso paraguaio, a de Dilma no caso brasileiro.

OM: E como está hoje o Paraguai, a quase quatro anos do impeachment de Lugo? ML: O governo de Federico Franco [vice-presidente de Lugo, que assumiu após o impeachment] foi um desastre. Permitiu a exploração de reservas naturais por empresas de mineração estrangeiras, além de gastar todas as suas possibilidades de corrupção, porque sabia que seu partido [PL] provavelmente não voltaria a ganhar eleições para o Executivo nacional.

Já o governo de [Horacio] Cartes, que é o presidente 'legal', o que foi eleito, aprovou uma aliança público-privada, que é uma privatização acobertada. O Paraguai tinha sido dos poucos países na região a manter públicos os serviços como água, gás e luz e essa medida, além de proporcionar a oportunidade para casos de corrupção enormes, prejudicou os mais pobres, que deixaram de ter certos subsídios e começaram a ter que pagar contas mais caras a entes privados.

O Paraguai vive um boom econômico quase desconhecido para a região, que vem de antes da presidência de Fernando Lugo, mas a extrema pobreza cresce a um ritmo similar ao da extrema riqueza. Isso tem a ver com a dinâmica produtiva do Paraguai, mas também com a gestão de Cartes, que foi extremamente violenta com as classes populares, desmantelando o que restava das políticas sociais do governo de Lugo.

OM: Como atuam hoje os movimentos sociais no Paraguai? ML: Lugo fortaleceu movimentos mais cidadãos no seu governo, ao mesmo tempo que cooptou movimentos camponeses - e cooptar é quase como desarticular. Isso foi um problema durante o processo de impeachment, porque naquele momento ele precisava desses movimentos, que são os mais fortes do Paraguai.

Hoje vários grupos que estavam vinculados ao governo voltaram a se unir com outros mais críticos e o movimento camponês voltou a realizar grandes marchas e se rearticulou. Também começam a surgir movimentos de favela, com demandas urbanas, conformados por filhos e netos de camponeses que migraram para a capital, Assunção, e, justamente porque o Paraguai tem uma economia industrial quase nula, não puderam se incorporar à cidade.

OM: Qual perspectiva há de que o massacre de Curuguaty, que motivou o processo de impeachment de Lugo, seja esclarecido? ML: Vai ficar impune. O julgamento foi suspenso 14 vezes - sempre dentro da legalidade, veja bem - e as declarações de quem estava presente são absolutamente contraditórias. Será um desses buracos negros da história paraguaia. O que para mim é muito claro é que não foram os camponeses que mataram todas essas pessoas, com suas armas precárias, muitas vezes em desuso. A própria polícia apreendeu armamento incompatível com os sons dos disparos e imagens feitas de um helicóptero desapareceram. Pode ter certeza de que não foi um camponês que sumiu com elas.

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